quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A Cidade de Porto Alegre


Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda



De condenado a herói 
A vida secreta de José Marcelino por Fábio Kühn http://www.revistadehistoria.com.br/v2/images/nada.gif


“Nem eu sou para estas terras, nem estas terras para mim”. O tom definitivo da sentença dá a impressão de uma relação inconciliável. Mas as palavras de José Marcelino merecem um desconto. Quando ele as proferiu, estava vivendo havia mais de uma década no Brasil, onde era governador, depois de ter prestado importantes serviços militares durante um período das intensas batalhas pelas fronteiras do Sul.

Em 1778, o ambiente na Colônia, de fato, não era dos melhores para ele. Bom administrador por um lado, por outro era turbulento, autoritário, de temperamento irascível. Chegava a hora de voltar para casa, e de voltar à sua identidade original: não José Marcelino de Figueiredo, mas Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda.

Manuel nasceu em 1735 na vila de Bragança, no extremo norte de Portugal. Era um homem da fronteira, que se criou em meio às rivalidades com os espanhóis. Seu pai, Antônio Gomes de Sepúlveda, chegou a ser coronel da cavalaria ligeira, mas a família tinha origens humildes – seu avô fora um simples sapateiro. Ingressou na carreira militar um tanto tardiamente, aos 27 anos, como cadete no Regimento dos Voluntários Reais, sediado no Faro. Dois anos depois, já como capitão de cavalaria, sua índole agressiva o envolveu numa tragédia: uma rude discussão com um colega de regimento, o escocês John MacDonell, terminou em assassinato. Julgado pelo Conselho de Guerra, foi condenado à pena de morte. Mas a sorte lhe abriu um novo destino.

Alguma misteriosa proteção superior o poupou da execução. Sua pena foi comutada e ele ainda acabou promovido, obtendo a patente de coronel do regimento da cavalaria auxiliar. Em contrapartida, teria que abandonar Portugal clandestinamente. Um ofício de 1765, enviado de Portugal ao vice-rei do Brasil, conde da Cunha, justificou assim o plano secreto elaborado para Manuel Sepúlveda: “Até o presente andou refugiado, e agora buscou ocultamente o serviço, e sendo como é oficial de préstimos, não é justo que se perca; não convindo, porém, que se saiba que tornou a ele: (...) o admita em qualquer dos Regimentos dessa Capitania com o (...) referido nome de José Marcelino; e guardando-se um inviolável segredo no referido”.

Com essa nova identidade, ele desembarca no Rio de Janeiro no mesmo ano. Não fica muito tempo na capital, pois o vice-rei o nomeia comandante da fronteira do Rio Grande, no acampamento de São Caetano, subordinado somente ao governador José Custódio de Sá e Faria. Como para purgar seu pecado original, o oficial é enviado para a fronteira, onde se presencia a “guerra viva”: a ocupação militar castelhana na região se prolonga há anos. Em maio de 1767, José Marcelino recebe ordens do governador para atacar o porto e a vila de Rio Grande, ocupados pelos espanhóis. Ele cumpre a determinação, mas o ataque é malsucedido, o que gera mal-estar nas relações diplomáticas entre as Coroas ibéricas.

Apesar do insucesso, deve ter causado boa impressão, pois em 1769, depois de outra passagem pelo Rio de Janeiro, foi nomeado governador da capitania do sul, também chamada Continente do Rio Grande, cuja capital era Viamão. A primeira fase de sua administração durou dois anos, no fim dos quais foi afastado das funções pelo vice-rei, marquês do Lavradio, certamente impaciente com suas seguidas demonstrações de desobediência. É o que explica o próprio Lavradio, em carta ao secretário da Marinha, Martinho de Melo e Castro: “Sou obrigado a dizer (...) que contra a limpeza de mãos do coronel José Marcelino não tenho cousa alguma, antes me consta ter servido com grande isenção, e os seus erros todos são nascidos de uma vaidade de fidalguia e de ciência que lhe parece estar superior a todos”. O vice-rei determinou inclusive a realização de uma devassa para investigar as atitudes de José Marcelino.

Mais uma vez, suas virtudes administrativas valeram mais que os defeitos da vaidade: nem as divergências com a maior autoridade da Colônia impediram que voltasse ao cargo de governador em 1773, agora na nova capital, Porto Alegre. Logo nos primeiros meses, teve de enfrentar um enorme desafio: os castelhanos, comandados pelo general Vértiz, fizeram nova tentativa de invasão do Rio Grande. Com uma estratégia inteligente, José Marcelino enganou os espanhóis, que estavam em sensível vantagem numérica: com salvas de tiros de canhão, fez crer aos inimigos que tinha munição de sobra, quando, na verdade, ela escasseava. Assim resistiu à investida e garantiu a defesa da fronteira. A ação lhe valeu bastante prestígio junto à Coroa e a promoção, no ano seguinte, a brigadeiro de Cavalaria.

Mas manter-se afastado de polêmicas não era com ele. Passada a guerra, envolveu-se em sucessivos conflitos com a Câmara de Porto Alegre. O primeiro atrito ocorreu em maio de 1777, quando mandou deter vereadores sob a alegação de que eles continuavam residindo na antiga capital, Viamão. Sua verdadeira intenção era pressioná-los a liberar recursos para o reparo de uma ponte. Passados quatro dias, eles concordaram em pagar a quantia exigida. No ano seguinte, o governador ordenou nova detenção de vereadores, com o pretexto de que a Câmara deveria pagar os aluguéis da casa do “mestre de meninos”, um professor primário. Em 1779, mandou prender o vereador mais velho da Câmara, Brás de Freitas Guimarães, por ter se negado a dar informação a um requerimento seu.

O que estava por trás dessa perseguição à Câmara era uma suposta aliança entre os vereadores e o coronel Rafael Pinto Bandeira, antigo desafeto de José Marcelino. A rixa vinha desde o início da década de 1770, mas, diante da conjuntura de guerra, o governador não podia dispensar os serviços militares dos poderosos. Em uma carta daquele período, acusou Pinto Bandeira de contrabandista, mas alegava não poder puni-lo, repetindo uma máxima muito utilizada pelos administradores coloniais: “Me achei na necessidade de fazer dos ladrões fiéis”. Ou seja, era preciso fechar os olhos a certas irregularidades.

No entanto, pacificada a capitania, José Marcelino reabriu as investigações contra o desafeto, determinando sua prisão. Desta vez, perdeu a queda de braço: o caso chegou ao Rio de Janeiro, onde um Conselho de Guerra mandou reconduzir Rafael Pinto Bandeira ao seu posto e determinou a saída do brigadeiro José Marcelino do governo do Continente do Rio Grande.

De volta ao Rio de Janeiro, já com idade relativamente avançada para a época – tinha 46 anos –, José Marcelino tomou uma providência fundamental para melhorar sua condição social: casou-se. A escolhida foi D. Joana Corrêa de Sá e Castro, descendente direta do poderoso Salvador Corrêa de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro por três vezes (1637-1642, 1648 e 1659-1660) e responsável pela libertação de Angola do domínio holandês. O casamento foi em setembro de 1781, na freguesia de Santo Antônio da Jacutinga (atual Nova Iguaçu), e um ano depois houve o batismo de sua primeira filha, Maria Inácia.

Em fins da década de 1770, José Marcelino já havia manifestado ao vice-rei o desejo de regressar a Portugal. Alegando que “suas moléstias” o tornavam “incapaz de governar”, pretendia “descansar à minha Casa e Província de Trás os Montes”. A licença veio, enfim, em 1783. E ele não só conseguiu permissão para voltar, como recuperou seu verdadeiro nome.

Quase vinte anos depois de sua vinda para o Brasil, estava reabilitado: retornava como brigadeiro, casado em uma das melhores famílias da terra e ainda por cima nomeado governador de sua cidade natal. A carreira de Sepúlveda, no entanto, estava longe do fim.

Estabelecido em Bragança, provavelmente em situação financeira confortável, faltava-lhe a promoção social que conduzisse ao enobrecimento. Isto ocorreu em 1789, quando se tornou fidalgo da Casa Real. Passados mais alguns anos, obteve uma carta régia com nomeação para governador das armas de Trás-os-Montes, um dos mais elevados postos militares de Portugal.

Do alto do nobre posto, ainda participou com destaque de um episódio marcante na história de Portugal: a guerra de libertação do domínio francês, em 1808. É considerado o líder da chamada Revolução Transmontana, iniciada por ele para expulsar os invasores. Do Rio de Janeiro, o príncipe regente D. João soube reconhecer o valoroso militar, nomeando-o para o Conselho da Guerra no ano seguinte.

Sepúlveda morreu em 1814, exatamente meio século depois de ter sido condenado à morte. A decisão de poupar-lhe a vida não poderia ter sido mais benéfica para o Império lusitano. Mesmo encrenqueiro e desobediente, ele ajudou Portugal em duas frentes: a garantir a fronteira meridional da América e a resistir contra invasores franceses na Europa. Seja como José Marcelino, seja como Manuel, não há dúvida: ele inscreveu seu(s) nome(s) na História.

Fábio Kühn é professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de “José Marcelino de Figueiredo, governador do Continente do Rio Grande”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, v. 140, 2005).

Saiba Mais - Bibliografia:

CAVALCANTI, Nireu. Crônicas Históricas do Rio Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

MACEDO, Francisco Riopardense de. O Aniversário de Porto Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorial, 2004.

SPALDING, Walter. Pequena História de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967.

VELLINHO, Moysés. “Um Sepúlveda no Governo da Capitania de São Pedro” in: Fronteira. Porto Alegre: Ed. Globo/UFRGS, 1975.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Manuel de Sousa Sepúlveda

MANUEL DE SOUSA SEPÚLVEDA
Fidalgo das campanhas da Índia: ? – 1552



QUANDO TUDO ACONTECEU...

1552: Comandado por D. Manuel de Sousa Sepúlveda parte de Cochim (Índia), rumo a Lisboa, o galeão São João, o qual vem a naufragar nas costas do Natal. De Sepúlveda, o comandante, apenas se conhece a tragédia que o vitimou, também à sua esposa e filhos e à maioria dos seus companheiros de viagem. E conhece-se porque o primeiro relato deste naufrágio é recolhido e depois enfeixado, juntamente com outros opúsculos de outros naufrágios (os disputados romances de cordel), na História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito, reverso da epopeia dos Descobrimentos, e cujo primeiro tomo é editado em 1735. O relato foi redigido por autor anónimo talvez sobre informações de Álvaro Fernandes, guardião da nave, e pela primeira vez impresso cerca de 1554. Camões, no Canto V de Os Lusíadas, põe o Adamastor a profetizar o acontecimento, três estâncias. Ainda sobre o tema, o poeta quinhentista Jerónimo Corte-Real escreve um poema épico intitulado Naufrágio e lastimoso sucesso de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor de Sá, sua mulher e filhos, postumamente impresso em 1594.


JUNTO AO CAIS DE PEDRA


Fim de tarde. Numa taverna, junto ao cais de pedra de Alfama, em Lisboa, dois velhos marinheiros estão sempre a esgatanhar-se. Pedro "Má Fortuna", o moreno, tange o alaúde e entoa, lamenta, geme:
- O São João já se afunda, foi por divina vontade...
Paulo "Tiro e Queda", o de pele mais coada, interrompe, contesta:
- É falso! Carregados como íamos, foi por desleixo dos homens.
Está ensarilhado o confronto. Diz o primeiro: levávamos pimenta pouca. O segundo contradiz: a nau, de outras mercadorias, levava excesso de carga. Novo lamento: desígnios da Providência. Novo ataque:imprevidência dos homens, isso sim! Remata o Pedro "Má Fortuna":
- Deus é quem sabe, Deus é quem pode, Deus é quem manda.
Contrapõe o Paulo "Tiro e Queda":
- E se os homens entram em desmando, por acaso a culpa cabe a Deus? Tão chorão és tu que, sem dar por isso, até cais na impiedade...
Levanta-se, exalta-se, gesticula, berra:
- És deveras apoucado. Nem reparas que desmando, ou desleixo, é atulhar um galeão de fardaria em barda, que sobe no convés até à altura dos castelos; é fazer-se ao mar em lenho apodrecido e vem uma vaga forte e logo parte o leme em dois e leva uma das metades; é içar pano velho e roto e vem uma súbita rajada que o rasga todo. Querer comer um boi inteiro numa única refeição, esse é o desmando maior, cobiça dos nossos fidalgos que fazem a carreira da Índia, gula tão desmedida que morrem enfartados os comilões. Perdem-se e, por eles, com eles vamos nós à perdição. Saber não é crença, é querença de experimentar para avaliar melhor. O que te faz falta, ó meu chorão, é pontaria de tiro e queda...
Levanta-se também o Pedro "Má Fortuna". Cada qual finca-se no seu terreno e gritam um com o outro, assanhados batem com as canecas na mesa, insultam-se, fideputa ruim, pagão, sáfio bargante, ímpio, homem rascão. Atracam-se para medir forças. Os mais novos, eu entre eles, tratamos de apartá-los. De lágrimas nos olhos, os dois velhos acabam porém por se abraçar. Bêbedos? Certamente, mas não apenas por vinho... Atravessaram juntos o mesmo e grande perigo; quer queiram ou não, apesar das fúrias breves e destemperos de linguagem, irmanados quedaram para sempre.
Sossegam, já sorriem do confronto. Mando vir outra canada de vinho, encho as três canecas. Enquanto bebemos, eles mais do que eu, tento desenlear aquele passo que tanto os atormenta.

TEMPESTADE

Com avantajado lastro de mercadorias, a 3 de Fevereiro de 1552 larga de Cochim, rumo a Lisboa, o galeãoSão João. É data já tardia para apanharmos ventos de feição, mas não podíamos ficar ali mais um ano à espera dos ventos bons. Já dizia D. Afonso de Albuquerque que é preciso andar depressa, sacar do Oriente quanto mais possamos no menor dos tempos. Deveríamos ter partido em fins de Dezembro mas largamos só em Fevereiro. Seja o que Deus quiser, dizem uns. É desastre anunciado, dizem outros.
São João é comandado por D. Manuel de Sousa Sepúlveda, fidalgo mui nobre e bom cavaleiro, amigo de amparar os necessitados; na Índia gastou em seu tempo mais de cinquenta mil cruzados em dar de comer a muita gente. Com ele seguem D. Leonor de Sá, sua esposa, e dois verdes meninos, filhos do casal, e ainda um terceiro, bastardinho de Manuel de Sousa. A bordo vão também os fidalgos Pantaleão de Sá (cunhado do comandante), Tristão de Sousa, Diogo Mendes Dourado de Setúbal e Amador de Sousa. Ainda soldados de torna-viagem, o mestre, o contramestre e o piloto da nave, carpinteiros, calafates e guardiães, mulheres, aias e crianças, para além dos muitos marinheiros e dos escravos em maior número.
Por causa dos ventos ponteiros e das ruins velas que trazemos, tardamos em avistar o Cabo da Boa Esperança. Manuel de Sousa pede então a André Vaz, o piloto, que mais se aproxime de terra. Ele atende e assim começa a nossa perdição. Somos apanhados por ventos que, num dia, sopram de poente, e noutro sopram de levante. O capitão chama o mestre e o piloto e pergunta-lhes o que se deve fazer com aquele tempo e eles respondem que será bom conselho arribar. Mas têm de adiar o plano porque mais furiosa se torna a tempestade e uma vaga parte ao meio o leme podre e leva uma das metades e súbitas rajadas rasgam e levam as velas e outras não há de reserva. Aflição e, no meio da tormenta, sob o comando de Manuel de Sousa, é repartida a gente para cada uma das tarefas; da madeira que há a bordo, tentamos fazer um novo leme; de alguma roupa que trazemos de mercadorias, tentamos fazer algum remédio de velas com que possamos arribar a Moçambique. Mas, para não irmos a fundo a pique, largamos tudo e corremos a cortar o mastro da proa que nos está abrindo a nau.
Diz o Pedro "Má Fortuna":
- Todos, mas todos, até fidalgos, metemos ombros ao trabalho sem entre nós haver distinção. Foi passo bonito, lembras-te?
Contradiz o Paulo "Tiro e Queda":
- No artigo da morte Deus não faz distinção entre nobreza e plebe. Por que haveriam os homens de fazê-la?


NAUFRÁGIO

No dia 8 de Junho começa a ventania, e também a correnteza, a empurrar para terra a nau desgovernada e já aberta, só por milagre é que se sustenta ainda sobre as ondas. Manuel de Sousa manda baixar uma manchua, que é uma das muitas embarcações pequenas que todas as naus levam a bordo. A missão dos remadores será descobrirem praia onde melhor possamos encalhar. Calcula o comandante poder desembarcar toda a gente e depois, do galeão, recolher armas e mantimentos, toda a fazenda que possamos, para procedermos a trocas em terra de cafres e melhor nos defendermos. Pensa ainda poder construir dos destroços um caravelão que leve recado a Sofala, para dali recebermos algum socorro.
Volta a manchua à nau. Avisam os remadores que, na costa, há apenas uma praia, o resto é toda ela de rochedos. Na deriva, quando o galeão passa em frente à praia indicada, lançamos âncora e baixamos um batel. A muito custo, conseguem os homens fixar em terra uma segunda âncora.
Amaina o vento e Manuel de Sousa pede ao mestre e ao piloto que o ponham em terra, juntamente com a sua mulher e filhos e mais vinte homens, e eles os embarcam no batel. Varando as ondas, alcançam por fim a praia.
Torna o vento a soprar com tanto ímpeto e o mar a crescer tanto que as três manchuas que vão, a seguir, demandar terra, se perdem e com elas os marinheiros.
Na manhã do terceiro dia o galeão está preso apenas pela amarra em terra, porque a outra se soltou do fundo falso. Vendo que a nau corre perigo de ser arrastada para o pego, André Vaz, o piloto, diz:
- Irmãos, antes que a nau se abra e vá ao fundo, quem quiser embarcar comigo naquele batel o poderá fazer.
Com grande trabalho embarcam quarenta pessoas, entre as quais o Paulo "Tiro e Queda". E tão grosso anda o mar que atira o batel, feito em pedaços, no meio da praia mas, por milagre, dessa batelada ninguém morre.
Neste meio tempo, anda Manuel de Sousa pela praia, a acudir aos náufragos, e a encaminhá-los para junto de uma grande fogueira que acendera, por causa do muito frio que faz aqui nas terras do Natal.
Por fim a nau assenta no fundo e logo se parte pelo meio, do mastro à vante um pedaço e outro do mastro à ré; e daí a obra de uma hora, aqueles dois pedaços se fazem em quatro. A caixaria da fazenda vem à tona, e sobre ela lançam-se as gentes, procurando algum apoio para alcançar terra. Morrem, neste lance, mais de quarenta portugueses e setenta escravos. Os outros vêm a terra, uns por baixo, outros por cima, no rolo do mar. Muitos de nós feridos e rasgados pelos pregos e madeirame, entre os quais o Pedro "Má Fortuna". Quatro horas depois o galeão está desfeito e dele o mar devolve apenas destroços. Sobreviventes são cerca de 200 portugueses e 300 escravos.
Diz o Pedro:
- Má fortuna, má fortuna, estava escrito lá em Cima, ninguém foge ao seu destino... Desventurado Manuel de Sousa.
Contradiz o Paulo:
- Se está escrito lá em Cima eu cá não sei, mas estou em crer que a sorte se escreve aqui em baixo. .Bem-aventurado André Vaz, devo-lhe a vida; eu e mais quarenta.

EXORTAÇÃO






Pela areia sobram apenas estilhaços de madeira. Portanto não há tábuas inteiras para construirmos uma nova embarcação. Manuel de Sousa toma conselho com os outros fidalgos. Decide ficar naquela praia durante alguns dias, esperando a convalescença dos feridos e também por ali haver uma fonte que mata a sede a todos nós.
Surgem uns cafres que de longe nos vigiam, logo se afastam. Temendo ataque, de arcas e pipas fazemos as nossas tranqueiras. Depois aparecem quatro ou cinco dos negros com uma vaca, dispostos a trocá-la por pregos de ferro, metal que muito apreciam e de que andam muito necessitados. Mas acabam por não fazer a troca pois outros cafres gritam que não o façam. O comandante nem sequer tenta apossar-se do animal, embora já estejamos a passar fome. É de natureza branda e não quer conflitos com outras nações.
Durante a noite, Manuel de Sousa levanta-se de três a quatro vezes para rondar os quartos, assim começa a consumir as suas forças.
Ao fim do décimo segundo dia, convalescidos os feridos, o comandante exorta a companhia:
- Amigos e senhores, bem vedes o estado a que, por nossos pecados, somos chegados. Mas é Nosso Senhor tão piedoso que ainda nos fez mercê que não fôssemos ao fundo naquela nau. Os dias que estivemos aqui nesta praia, bem vedes, senhores, que foram necessários para nos convalescerem os doentes. Já agora, Nosso Senhor seja louvado, estão prontos a caminhar. E portanto vos ajuntei aqui para assentarmos que caminho havemos de tomar para a nossa salvação. Como sabeis, da nau não salvámos madeira que baste para fazer uma outra embarcação. Estou em crer que o melhor será caminharmos ao longo destas praias até alcançarmos o rio que descobriu Lourenço Marques, que é aguada da Boa Paz. Uma mercê vos quero pedir: não me desampareis, nem deixeis, dado caso que eu não possa andar tanto como os que mais andarem, por causa de minha mulher e filhos. E assim todos juntos quererá Nosso Senhor, pela Sua misericórdia, ajudar-nos.
Ficamos todos mais acalentados com as palavras do comandante. Levantamos acampamento e, em boa ordem, iniciamos a caminhada que terá umas 180 léguas por costa mas, por causa dos muitos rodeios, certamente virão a ser mais de 300.
Diz o Pedro:
- Ninguém foge ao seu destino, má fortuna, má fortuna...
O Paulo encolhe os ombros, enfado.
CAMINHADA

Na frente seguem Manuel de Sousa e a sua esposa, D. Leonor, transportada num andor por escravos, e ainda os seus filhos; também o piloto André Vaz erguendo uma bandeira com um crucifixo, e ainda oitenta portugueses com os seus escravos, serão assim centena e meia na vanguarda. Logo atrás segue o mestre do galeão com a gente do mar e as escravas. Pantaleão de Sá, o irmão de D. Leonor, com o resto de portugueses e escravos fecha o cortejo, serão assim duzentos na retaguarda.
A tiros de fogo mantemos em respeito o grupo de cafres que, de longe, continua a vigiar-nos. Caminho penoso, fome e sede, muita. Comemos apenas do arroz que salvámos da nau e alguns frutos do mato e até ossos torrados. Muitas vezes acontece no arraial vender-se a pele de uma cobra por quinze cruzados; macerada em água, depois a comem os compradores. Mas quando caminhamos pelas praias, mantemo-nos com marisco e peixe que o mar lança fora. Portugueses e escravos, muitos são os que vão morrendo. Alguns de exaustão, outros porque se perdem e então as feras do mato os devoram, leões e também umas alimárias como tigres, porém às malhas e não às listas; às vezes até serpentes gigantes que laçam, esmagam e engolem presas de vulto.
Um dos desaparecidos é o bastardinho do comandante, um menino de uns doze anos que era transportado às costas por um escravo, ora tresmalhado do cortejo. Manuel de Sousa oferece quinhentos cruzados a quem lhe encontre o filho, mas ninguém ousa meter-se sozinho por aqueles matagais adentro. Com tal sucesso já começa a estremecer o siso do comandante.
Durante dois meses e meio ora nos metemos ao sertão em busca de comer, ora varamos rios e nos tornamos ao longo do mar, com muito perigo subindo e descendo serras de muita ingremidade. E porque a sede é muita e a escassez maior, entre nós acontece vender-se um púcaro de água de um quartilho por dez cruzados; e um caldeirão, que leva quatro canadas, por cem cruzados. E a quem não tem dinheiro, o comandante entrega um caldeirão e manda que vá em busca de uma nascente, que pelo caldeirão cheio pagará os cem cruzados. E muitos vão e voltam e assim fazem dinheiro com que podem comprar a água que descobriram e trouxeram. Mas outros não voltam, talvez comidos pelas feras, talvez mortos pelos cafres.
Diz o Paulo:
- Todos iguais diante da morte... Passo bonito, sim senhor... Mas se a danada abranda o passo, entre nós começa logo a distinção...
O Pedro queda-se mudo.


O BOM REIZINHO

Ao fim de três meses de caminhada, junto a um rio com três braços que entram no mar em uma foz, depara-se a nossa companhia com um cafre, homem velho, senhor de duas aldeias, o qual nos dá bom agasalho. Pouco tem, pois os cafres semeiam pouco, antes preferem criar umas escassas cabeças de gado e colher frutos silvestres e caçar no mato. Mas do que tem, por nós o distribui. Pelo bom acolhimento, vemos que já teve trato com portugueses e ficamos a saber que ali pousaram Lourenço Marques e o seu companheiro António Caldeira. Pede-nos que não passemos avante, que ele nos sustentará, pois mais além há um outro rei, com o qual está em guerra, que é ladrão muito cruel. Tão bom homem parece ser este reizinho que até lhe damos o nome de Garcia de Sá, por ser velho e, malgrado a cor, ter muita parecença com aquele outro velho que todos nós, os da Índia, bem conhecemos.
Tanto nos cativa o bom reizinho que chegamos mesmo a ajudá-lo a enxotar um rival rebelado contra ele, e quem comanda a expedição é Pantaleão de Sá que, depois de breve escaramuça, ajunta e recolhe e entrega ao crismado "Garcia de Sá" todo o gado do rebelde.
Ali pousamos mais de uma semana cobrando forças. Depois Manuel de Sousa manda continuar viagem em demanda do rio de Lourenço Marques, muito embora André Vaz avance que aquela lhe parece justamente ser a aguada da Boa Paz e que até as intenções pacíficas do reizinho justificam o nome que Lourenço Marques deu ao sítio; e ainda que naquela foz há-de surdir um navio da carreira da Índia que possa resgatar-nos. O comandante não quer ouvi-lo, já anda com o miolo maltratado pelas muitas vigias e trabalhos e desgostos como a perda do seu filhinho bastardo. Para mal dos nossos pecados, decide continuar a jornada. Pede ao cafre "Garcia de Sá" almadias para cruzar aquelas águas muito largas. O reizinho, pelo bem de todos nós, tenta dissuadi-lo do intento. O comandante desvaira e ameaça-o com a espada, o que muito nos espanta, conhecendo nós a brandura da sua natureza. A contragosto, o reizinho acaba por ceder as almadias e toda a nossa companhia atravessa o primeiro dos três rios. E chegando à outra banda Manuel de Sousa queixa-se muita da cabeça e nela D. Leonor e uma escrava atam uma toalha ensopada em água.


ENTREGAR AS ARMAS

Somos apenas uns cento e vinte. Os outro trezentos e oitenta ou mais, ou morreram de exaustão, ou nas escaramuças com os cafres, ou perderam-se por esses matos. Demoramos cinco dias a atravessar as terras que há entre um rio e outro. D. Leonor, como as outras, caminha a pé, porque escravos já não há para transportá-la num andor. E se houvesse, forças já não teriam para transportá-la. É mulher fidalga, delicada e moça, e vem por estes ásperos e trabalhosos caminhos como qualquer homem robusto do campo e muitas vezes consola as mulheres da sua companhia e ajuda a trazer os seus filhos. Por causa dos grandes rodeios, já teremos andado mais de trezentas léguas. É grande milagre mulher tão fraca encontrar em si tão súbita força.
Junto à margem do segundo rio encontramos um golpe de cafres e entramos logo em som de pelejar cuidando que estão ali para nos roubar. Mas eles fazem-nos sinais de paz e usando como língua, nós e eles, uma nossa escrava que é de Sofala, dizem-nos que se queremos mantimentos para comprar, os acompanhemos aonde está o rei deles, que nos fará muito agasalho. E nós vamos, caminhamos cerca de uma légua, e o rei manda dizer-nos que não entremos na aldeia porque todo o seu povo muito nos teme, principalmente às nossas armas de fogo. Pede-nos que acampemos fora, junto a umas árvores, que logo nos mandará mantimentos. Manuel de Sousa manda que assim façamos e fazemos. E ali ficamos cerca de cinco dias, trocando pregos de ferro por alguns víveres. Vem também recado para ali esperarmos que algum navio da Índia nos recolha junto à foz do rio. Mas os mantimentos são poucos, a fome é muita e a sede maior porque as águas daquele rio são salgadas. Então Manuel de Sousa manda dizer ao rei que precisamos ajuda maior e ele responde-nos que uma única aldeia não pode sustentar tantas bocas, e que o melhor será apartar a companhia por outras aldeias suas que não ficam longe. Mas que antes lhe entreguemos as espingardas, caso contrário o povo fugirá de nós.
Manuel de Sousa diz-nos que assim vai fazer, pois essa será a única forma de nos sustentar até que arribe navio da Índia, pois aquele é que é veramente o rio de Lourenço Marques, embora André Vaz sustente que a aguada da Boa Paz é o primeiro rio e não o segundo. D. Leonor acha que o marido já não está no seu juízo perfeito, por isso o interrompe, é grande a sua ânsia:
- Vós entregais as armas e agora me dou por perdida com toda esta gente.
Nem a fala da esposa convence Manuel de Sousa a arrepiar caminho. Reafirma que fará como disse, mas que todos são livres de fazerem como acharem melhor, ficar ou partir. Atordoados, muitos deixam-se ficar por ali. Atordoados, uns tantos abalam e espalham-se por matos e serranias sem saber ao certo para onde ir.
Diz o Pedro:
- O que poderíamos nós fazer, se nem comandante já tínhamos?
Contradiz o Paulo:
- Os portugueses são assim. S alguém manda e fala grosso, obedecemos com diligência. Se nos falta a comandância, desarvoramos. Por nossa conta, somos incapazes de traçar o nosso próprio rumo...
MORTE
 O rei toma posse das espingardas. Os portugueses e os poucos escravos que ficaram são apartados por aldeias várias e logo começam a ser espancados, roubados e enxotados para o mato. Aos magotes, hoje uns, amanhã outros, voltamos a reunir-nos. Noventa desgraçados já vamos outra vez a caminho. Não sabemos para onde e agora até sem armas nem mantimentos. Na retaguarda do cortejo Manuel de Sousa já não diz cousa com cousa e D. Leonor vai triste e desconsolada por vê-lo assim.
Dois dias depois saltam outra vez os cafres em cima de nós para roubar as roupas que vestimos, únicos bens que ainda nos restam. D. Leonor não se deixa despir, às punhadas e bofetadas se defende. Manuel de Sousa, para evitar que por isso a matem, roga-lhe:
- Senhora minha, lembrai-vos que nascemos nus e seja Deus servido que volteis à inocência primeira.
Vendo-se despida, D. Leonor atira-se logo ao chão e tenta cobrir-se toda com os seus cabelos, que são muito compridos e entretanto cava uma cova na areia onde se mete até à cintura. Dali nunca mais se sairá.
Manuel de Sousa arranca de uma velha aia uma mantilha que ainda lhe sobrara e com ela cobre D. Leonor.
O Paulo "Tiro e Queda" não se aguenta, mete aparte:
- Desnudar uma velha aia para cobrir a fidalga... Mesmo na aflição, continua a distinção...
Vendo assim nus o comandante e a sua esposa, por pudor e respeito desviamos o olhar. Então, já com os peitos cobertos pela mantilha e o resto do corpo enterrado na areia, D. Leonor chama André Vaz e diz-lhe:
- Bem vedes como estamos e que, por pecados nossos, já não podemos passar daqui. Encomendai-vos a Deus, ide-vos embora, fazei por vos salvar. E se chegardes à Índia ou a Portugal, contai como deixastes a Manuel de Sousa e a mim com meus filhos.
Chorando, André Vaz abala, outros com ele. Só uns poucos é que ficam, entre estes Pantaleão de Sá e o Pedro "Má Fortuna".
Embora com o miolo avariado, Manuel de Sousa ainda cuida de ir ao mato colher frutos para alimentar a esposa e os filhos. Um dia regressa e um dos meninos está morto. Enterra-o. No dia seguinte regressa e morta está a sua esposa, também o outro filho. Afasta as três escravas que choram sobre o corpo da sua esposa. Senta-se a seu lado. Com o rosto apoiado numa das mãos, sem dizer nada, nem chorar, durante meia hora queda-se de olhos postos nela. Depois, com a ajuda das escravas, abre uma cova na areia onde enterra D. Leonor e o filho. Levanta-se, não diz uma palavra, abala, mete-se pelos matagais adentro. Nunca mais ninguém o vê.
PANTALEÃO DE SÁ

Diz o Pedro:
- Cafres! Tições do Inferno à flor da terra...
Contradiz o Paulo:
- Chuvisco não é dilúvio, pôr de sol não é fornalha. Não há nações de homens bons e nações de homens maus. Em todas as nações há bons e maus. Cafre e homem bom, era aquele reizinho a quem chamámos Garcia de Sá.
Suspira e continua:
- Não assisti à morte de D. Leonor. Ia eu à cabeça daquele último cortejo de noventa homens. De nada me dei conta, nem sequer do assalto dos cafres para desnudar as pessoas da retaguarda. Quem me contou a desgraça foi Pantaleão de Sá, o seu irmão, que mais tarde me alcançou. Separámo-nos os dois do resto da companhia e andámos em vagamundo pela terra dos cafres. Um dia, quase mortos de fome e sede, chegámos a um povoado que nos pareceu de vulto. Não nos receberam os negros, quiseram até enxotar-nos porque o rei deles estava à morte e já estavam a preparar o nojo. Perguntou-lhes Pantaleão de Sá do que sofria el-rei e eles responderam que de uma chaga na perna. Pantaleão, por súbito alumbramento, fantasiou que era médico e disse-lhes que fácil lhe seria restituir a saúde a el-rei. Levaram-no à palhoça real. Examinou a perna do reizinho e depois veio cá para fora preparar o unguento, lodo, terra ensopada com a sua própria urina. Passou-o na chaga que parecia incurável e no dia seguinte o reizinho estava melhor. Por via disso, pudemos comer e beber à tripa forra. E no segundo dia quando, por entre gargalhadas, estávamos por tudo e já esperávamos sentença de morte, foi-nos dito que el-rei ficara melhor ainda, da chaga desaparecera o podre. Milagre acontecera, mas não dos lá de Cima, que Deus Nosso Senhor não é dado ao escárnio... Uma semana depois, recuperada a boa saúde do reizinho sempre com o mesmo unguento, os cafres puseram Pantaleão num altar, encheram-no de ouro e levaram-nos a Moçambique, donde retornámos a Lisboa num galeão da carreira da Índia. Aponto, olhai que é tiro e queda: povo de chorões, povo de intrujões...


FADO

- Vinho e zombarias... Amigo e senhor, é assim que vou levando a vida... Mas nada, mesmo nada, consegue afogar-me a dor, parece que foi ontem: D. Leonor desnuda e recolhida a uma cova, D. Manuel à deriva pelo mato... Paz às suas almas, que tormentoso e triste foi o fim de suas vidas!
Funga, esconde uma lágrima, melancolia, torna a sentar-se. O Pedro já dedilha e arranca uns trinados ao alaúde. Sobe uma oitava, canta, geme, chora:
          - Pano roto não enfuna,
          casco podre não navega,
          o São João já se afunda,
          má fortuna,
          sina cega,
          barafunda...
          Foi por divina vontade,
          foi por humano desleixo?
          Deus é quem sabe!
          Voltas do Fado,
          eu só me queixo...
E o Paulo, em contraponto:
- Pois, pois... Descobrimentos, encobrimentos...